quarta-feira, 10 de outubro de 2007

Defenestração!

Certas palavras têm significado errado. “Falácia”, por exemplo, devia ser o nome de alguma coisa vagamente vegetal. As pessoas deveriam criar falácias em todas as suas variedades. A Falácia Amazônica. A misteriosa falácia negra. “Hermeneuta” deveria ser membro de uma seita de andarilhos herméticos. Onde eles chegassem, tudo se complicaria.
_ Os hermeneutas estão chegando!
_ Ih, agora é que ninguém vai entender mais nada...
Os hermeneutas ocupariam a cidade e paralisariam todas as atividades produtivas com seus enigmas e frases ambíguas. Ao se retirarem deixariam a população prostrada pela confusão. Levaria semanas até que as coisas recuperassem o sentido óbvio. Antes disso, tudo pareceria ter um sentido oculto. _ Alô...
_ O que é que você quer dizer com isso?
“Traquinagem” devia ser uma peça mecânica.
_ Vamos ter que trocar a traquinagem. E o vetor está gasto.
“Plúmbeo” devia ser o barulho que um corpo faz ao cair na água. Mas nenhuma palavra me fascina tanto quanto “defenestração”. A princípio foi o fascínio da ignorância. Eu não sabia o seu significado, nunca me lembrava de procurar no dicionário e imaginava coisas. Defenestrar devia ser um ato exótico praticado por pessoas. Tinha até um certo tom lúbrico. Galanteadores de calçada deviam sussurrar no ouvido das mulheres:
_ Defenestras? A resposta seria um tapa na cara. Mas algumas... Ah, algumas defenestravam.
Também podia ser algo contra pragas e insetos. As pessoas talvez mandassem defenestrar a casa. Haveria, assim, defenestradores profissionais. Ou quem sabe seria uma daquelas misteriosas palavras que encerravam os documentos formais? “Nestes termos, pela defenestração...” Era uma palavra cheia de implicações. Devo até tê-la usado uma ou outra vez, como em:
_ Aquele é um defenestrado. Dando a entender que era uma pessoa, assim, como dizer? Defenestrada. Mesmo errada, era a palavra exata. Um dia, finalmente, procurei no dicionário. E aí está o Aurelião que não me deixa mentir. “Defenestração” vem do francês “defenestration”. Substantivo feminino. Ato de atirar alguém ou algo pela janela.
Ato de atirar alguém ou algo pela janela!!!
Acabou minha ignorância mas não a minha fascinação. Um ato como este só tem nome próprio e lugar nos dicionários por alguma razão muito forte. Afinal, não existe, que eu saiba, nenhuma palavra para o ato de atirar alguém ou algo pela porta, ou escada baixo. Por que, então, defenestração? Talvez fosse um hábito francês que caiu em desuso. Como o rapé.
Um vício como o tabagismo ou as drogas, suprimido a tempo.
_ Les defenestrations. Devem ser proibidas.
_ Sim, monsieur le Ministre.
_ São um escândalo nacional. Ainda mais agora, com os novos prédios.
_ Sim, monsieur le Ministre.
Com prédios de três, quatro andares, ainda era admissível. Até divertido. Mas daí para cima vira crime. Todas as janelas do quarto andar pra cima devem ter um cartaz: “Interdit de defenestrer”. Os transgressores serão mutilados. Os reincidentes serão presos.
Na Bastilha, o Marquês de Sade deve ter convivido com notórios defenestreurs. E a compulsão, mesmo suprimida, talvez ainda persista no homem, como persiste na sua linguagem. O mundo pode estar cheio de defenestradores latentes.
_ É esta estranha vontade de atirar alguém ou algo pela janela, doutor...
_ Hmm. O impulsus defenestrex de que nos fala Freud. Algo a ver com a mãe. Nada com o que se preocupar _ diz o analista, afastando-se da janela.
Quem entre nós nunca sentiu a compulsão de atirar alguém ou algo pela janela? A basculante foi inventada para desencorajar a defenestração. Toda a arquitetura moderna, com suas paredes externas d vidro reforçado e sem aberturas, pode ser uma reação inconsciente a esta volúpia humana, nunca totalmente dominada.
Na lua-de-mel, numa suíte matrimonial no décimo sétimo andar.
_ Querida...
_ Mmmm?
_ Há uma coisa que eu preciso lhe dizer...
_ Fala, amor.
_ Sou um defenestrador.
E a noiva, na sua inocência, caminha para a cama:
_ Estou pronta para experimentar tudo com você. Tudo!
Uma multidão cerca o homem que acaba de cair na calçada. Entre gemidos, ele aponta pra cima e balbucia:
_ Fui defenestrado...
Alguém comenta:
_ Coitado! E depois ainda atiram ele pela janela!
Agora mesmo me deu uma estranha compulsão de arrancar o papel da máquina, amassá-lo e defenestrar esta crônica. Se ela sair é porque resisti.

...
Pq gente, essa crônica tinha que vir pra esse blog também!
amo!!!
...
Hoje eu acordei com uma vontade de defenestrar alguém!!! Ninguém em particular.